Isaac Essoudry: O Marroquino Chacham dos Retornados em Recife.

Renato Athias
14 min readMar 24, 2018

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Por Renato Athias

Foto de C.J. Maciel em 25/08/2017

Foi a minha amiga e colega Tânia Kaufman que me apresentou a Isaac Essoudry, ainda nos finais do anos noventa, e depois eu acompanhei sua trajetória através de alunos do Programa de Pós Graduação em Antropologia que fizeram várias entrevistas sobre diversos assuntos do judaísmo para suas dissertações de mestrado.

Não farei aqui uma biografia ou história de vida de nosso Chacham Isaac, de abençoada memória. Eu me propus com este texto [1] delinear alguns elementos de sua pedagogia que eu tive o prazer de acompanhar de muito perto nesses últimos anos, e assim compreender seu pensamento sobre o judaísmo. Eu devo dizer que Isaac foi, de fato, o meu mestre. É com muito orgulho, que digo sempre, que grande parte do judaísmo que possuo, eu recebi através de seus ensinamentos.

Durante a organização da celebração de seu aniversário de 80 anos, no Recife, eu iniciei uma longa entrevista com ele, buscando entender um pouco mais de sua trajetória de vida. Sem dúvida, acumulei muitas páginas de anotações. Porém, foi somente no ano passado que tive a oportunidade de conhecer duas irmãs de Isaac. Célia, a sua irmã mais nova, que mora em uma cidadezinha perto de Toulouse, na França, e Alegria, mais velha, que mora atualmente em Montreal. Estas duas senhoras cultas, ambas artistas, me relataram fatos sobre Isaac, com muita sensibilidade e emoção, que eu desconhecia, e que pelo seu jeito de ser, ele jamais contaria, pois falava muito pouco de sua vida para nós. Que ele tocava clarinete, que foi campeão de box em Casablanca e dedicado a arte. Esses e outros fatos me fizeram admirá-lo ainda mais.

Isaac nasceu em El-Ksar el Kebir (em árabe: القصر الكبير; Berber: ⵍⵇⵚⵔ ⵍⴽⴱⵉⵔ) é uma cidade que fica no noroeste de Marrocos, cerca de 160 km de Rabat, a 32 km de Larache e a 110 km de Tânger. A cidade também é conhecida como Alcazarquivir em espanhol ou Alcácer-Quibir em Português. O significado é “o grande castelo”. A cidade está localizada nas proximidades do rio Loukous, que faz de El-Ksar-el-Kebir uma das regiões agrícolas mais ricas do Marrocos. El-Ksar el-Kebir fornece quase 20% do açúcar necessário do Marrocos. Isaac falava sempre que havia nascido em Casablanca, talvez porque era mais fácil de falar para os outros, ou talvez, pela magia que palavra Casablanca sempre transmite aos brasileiros.

Importante lembrar que em 1578, o rei Dom Sebastião de Portugal sofreu uma derrota esmagadora na Batalha denominada de Alcácer Quibir pelas mãos do rei Abd al-Malik do Marrocos, o que pôs fim às ambições de Portugal de invadir e cristianizar o Marrocos. Os dois reis morreram durante esta batalha, assim como Abdallah Mohammed, que foi aliado de Sebastião. A morte de D. Sebastião iniciou os eventos que vão levar à união temporária das coroas de Portugal e Espanha sob Filipe II de Espanha. A vitória do rei Abd al-Malik deu a Marrocos força e prestígio internacional. A cidade então experimentou um crescimento substancial com a instalação de uma importante guarnição espanhola em 1911, como parte do Protetorado de Espanhol no Marrocos. Após a independência do Marrocos e a construção do reservatório Oued el Makhazine pelo rei Hassan II para administrar as reservas de água do Rio Loukos, a cidade tornou-se um importante centro regional de distribuição agrícola.

No Marrocos, a família Essoudry estava sempre muito unida. A figura paterna foi importante para todos. Samuel Essoudry, de abençoada memória, seu pai, foi um grande exemplo de vida. Certamente, pelo que sabemos foi seguido por todos os filhos. Max Essoudry Z”L, por exemplo, foi rabino em Israel e em Montreal, apoiando sempre as atividades de Isaac no Recife. Célia e Alegria viam Isaac como uma pessoa dedicada a família, e que até a sua juventude não tinha sua vida voltada para o estudo da Torá, o que acontecerá quando ele chega em Belém nos idos dos anos 1950. O seu pai Samuel, sem dúvida, exerceu uma enorme influência na trajetória de vida de Isaac. Ele deixou a Yeshivá no Marrocos para ir à Israel, e no exército Israelense esteve presente nos conflitos do Suez e Guerra do Sinai, em 1956, com 21 anos de idade.

Alegria e Célia me falaram, para a minha surpresa, que a língua falada em casa, quando todos ainda estavam juntos no Marrocos, sempre foi o Djudéo-Espanyol por várias gerações. Em, Belém nós chamamos essa língua de Haketia. Porém, essa era língua falada entre os judeus em Sefarad, e, como sabemos, essa era a mesma língua de muitos chachamim, cujos livros nós lemos até hoje. Certamente esses e outros fatos farão parte de outros textos sobre Isaac, mas, interessa-me aqui comentar sobre as bases de sua pedagogia, que sem dúvida faz parte do que costumo de chamar de Judaísmo Marroquino. Até meados de1958 cerca de 250 mil judeus deixaram o Marrocos, incluindo a família Essoudry.

A diáspora do judaísmo marroquino é imensa. Podemos encontrar grupos deles em muitos países do ocidente. Talvez a maior dessa diáspora nas Américas, ou a mais organizada talvez, se encontra na região Amazônica, no Brasil e no Peru, ao longo das margens do Rio Amazonas. Uma diáspora que se iniciou ainda nos anos de 1810, de acordo com os principais historiadores, como o General Ramiro Abraham Bentes e o Prof. Samuel Benchimol, de abençoadas memórias[2]. Isaac se junta a essa diáspora no final dos anos cinquenta, em Belém do Pará, quando a grande maioria dos judeus do Marrocos já tinham deixado o país, para nunca mais voltarem. Deixando para trás além de suas lembranças e histórias de séculos, os inúmeros imóveis e bens sentimentais. Não foi difícil a sua adaptação em Belém. Na realidade, ele não se encontrava “desterritorializado”, tal como Deleuze & Guatari (1977)[3] vão discorrer e desenvolver esse conceito na obra que escrevem sobre Kafka; nem pela língua e muitos menos pela cultura, pois muitos falavam em Belém a Haketia e realizavam estudos com sábios que também vieram do Marrocos.

Em Belém, a cultura judaica marroquina estava sempre fortemente presente nas comunidades de judeus da capital e dos interiores no Pará e no Amazonas. É de Belém, por exemplo, que sai a primeira tradução do Shir Hashirim para a língua portuguesa, realizada pelo poeta judeu José Benedito Cohen Z”L, intelectual importante na comunidade de Belém, mas também para o Brasil. Ele foi o autor de uma obra fantástica intitulada “Através do Marrocos”, um belo relato poético de viagens, feito pelo próprio, através daquele país, que deu contribuição demográfica para a formação da Amazônia, muito bem registrado por Eidorfe Moreira em seu livro “A Presença Hebraica no Pará”, de 1972.

No Marrocos Isaac tocava clarineta, e o shofar veio naturalmente

Em nossas conversas, eu descubro que Isaac conhecera meu avô, Jacob Athias e ambos estiveram juntos durante as festas de Rosh Hashaná e Yom Kipur no início dos anos sessenta, (Issac, nunca foi bom em precisar as datas). Ele me disse que era sempre chamado para fazer o papel de Baal Koré durante as celebrações na Esnoga da Travessa Campos Sales, em Belém, certamente pela qualidade de sua leitura da Torá, mas sobretudo pela sua voz. Esses momentos foram testemunhados por Isaac Dahan, atual Shaliach Tsibur da Comunidade de Manaus, quando era ainda jovem iniciante na leitura da Torá, em Belém. Quando o nosso Chacham completou 80 anos, Isaac Dahan enviou a seguinte mensagem:

“Lembro-me bem da passagem do Isaac Essoudry por Belém, eu ainda era novinho e já estava dando os primeiros passos para leitura da Torá e Chazanut. O papai, q.e.p.d. me colocava para ouvir a perashá dele (sempre foi um exímio Baal Korê), tudo na Esnoga Eshel Avraham, da Campos Sales. O pessoal se atrapalhava com o sobrenome dele e chamava Isaac “Sodré”. De certa forma, ele também participou no início da minha formação como Chazan, porém depois deixou Belém. Claro, a minha cópia e espelho foi o Leon Bengió (mejorado 120 anos), hoje morando em Israel. E, mejorado 120 anos também para o querido Essoudry, que fez de Recife sua morada, sedimentando um judaísmo idealista, onde a vontade de servir e manter as tradições sempre falou mais forte. Eu sempre o vi assim, felizes os membros da comunidade de Recife por contar com um judeu deste quilate dirigindo sua orientação religiosa”. (Trecho de e-mail enviado a Renato Athias em 25 de agosto de 2015).

Em Israel, 2010 na Knesset falando em nome dos Bnei Anusim do Recife

Isaac lia muito, e sempre comentava o que mais gostava de suas leituras conosco, com comentários diretos e certeiros. Em geral eram livros escritos em castelhano, francês, inglês, ou seja, as línguas que ele dominava além do hebraico e português, mas escrevia pouco. Ele gostava mesmo era de fazer traduções. Aliás, esse é um elemento de sua pedagogia que ele usava sempre. Não eram simplesmente traduções de palavras, eu diria que eram traduções culturais, pois como ele tinha viajado muito e conhecia muitos lugares, as traduções eram exemplos repletos de fatos observados. Porém, existe uma tradução que ele fez para o português, de um dos famosos livros do professor Jaime Barylko[4] judeu, filósofo e escritor argentino, cujo o texto foi bastante usado em suas aulas.

Em julho de 2017, eu estava em Belém, e conversando com o Chazan Inácio Obadia, da Esnoga Eshel Abraham, ele me falou que Isaac logo que chegou do Marrocos, antes de se casar, morou na casa do avô dele, o estudioso rabino Levy Obadia, de abençoada memória. Inácio lembra que seu avô e seu pai Eliezer Obadia Z”L, tinham longas conversas com Isaac. Nessa ocasião, Inácio me pediu para perguntar ao Isaac Essoudry o título de um livro sobre a Cabalá que seu avô, o famoso cabalista Ribi Levy Obadia Z”L se referia muito, e que certamente Isaac lembraria o título de tal livro. Era um livro muito precioso para o avô dele. Voltando ao Recife, em conversas que eu tive com o Isaac, ele me disse que lembrava muito bem desta época. Relatou as suas discussões e, e sobretudo, o quanto aprendeu e assim foi me dizendo vários títulos de livros sobre os quais os dois debatiam. Um deles, o “Agadoth Shlomo Hamelech” era o mais discutido e, que talvez teria sido esse que fora enterrado junto com Ribi Levy Obadia Z”L.

Isaac embaixo da hupá. uma das celebrações que ele gostava de realizar e onde em sua fala ele jogava com as palavras em hebraico: esh, ish e Isha.

“A memória do passado foi sempre um componente central da experiência judaica”, conforme assinala o grande historiador judeu Yosef Yerushalmi [5]. É exatamente com esse sentido que trago essas lembranças, quando temos a oportunidade de apontar elementos da pedagogia e da espiritualidade de Isaac Essoudry.

Ele será sempre visto, por todos nós que convivemos com ele, como “o Chacham dos Retornados”, daqueles judeus que fazem a “grande viagem da volta”, da Teshuvá como ele costumava dizer. Ele foi o primeiro a abrir as portas na Sinagoga da Martins Junior e depois as manteve sempre abertas, na Esnoga Beit Shmuel, para todos aqueles que desejavam retornar aos caminhos da Torá, como ele mesmo se expressava para nós. O que Isaac pensava a respeito dos Bnei Anussim, coletivo significativo e importante na cidade do Recife? Acredito que ele, depois de muito falar, ler e refletir, e, sobretudo pela sua vivência em muitos lugares, deu a ele um amplo entendimento sobre essa questão dos Marranos. Ele teve a oportunidade de falar sobre esse assunto em vários momentos importantes: Na Knesset, em Israel, em 2010, e, publicamente em seu discurso no Recife logo que recebeu o diploma de Honra ao Mérito por serviços prestados a comunidade, outorgado pela Universidade Federal Rural do Pernambuco, em 2015. Nessas ocasiões ele falou longamente sobre o seu pensamento. Presenciamos inúmeros depoimentos de Isaac e existem, todos sabemos, muitos escritos sobre essa questão.

Uma definição de Marrano, talvez a mais interessante, a qual eu tive acesso, é aquela do antropólogo Shmuel Trigano, que o aponta com aquele, o pioneiro da modernidade. Ele diz o seguinte:

“O Marrano é, por definição, um ator — um paradoxo — na história. Nisto, não é apenas o resíduo fossilizado de um mundo desaparecido no qual o novo mundo seria construído. O marrano é aquele que está condenado a desaparecer estruturalmente e essencialmente, é compromete-se a sobreviver e graças a ele continuar em seu desaparecimento. Assim, o judaísmo marrano é mais que o laboratório do homem moderno num estado-nação emergente: chamado de dupla identidade, novo cristão por fora e judeu por dentro. O Marrano é cidadão no público, mas vive em dualidade no domínio privado. Assim, o mito judeu da América é algo além de um testemunho enterrado no inconsciente. O Marrano é um dos primeiros pioneiros da modernidade (1992: 349) [6].

Mas, no campo do judaísmo, para Isaac, o Marrano que fazia a viagem da volta não precisa se “converter”, pois, sempre foi judeu. Ele pensava de acordo com Yossef Obadia Z”L, Grão Rabino Sefaradita por muitos anos em Israel, basta o retorno sincero para a Torá, se apresentar documentado em um Beit Din e passar pela Mikvé, recebendo assim uma Teudá de Retornado.

A imagem que sempre vem a minha memória é aquela de Isaac sentado na cabeceira da grande e importante mesa da Esnoga Beit Shmuel, iniciando o estudo da Torá. Sempre começando com a perashá hashavuá. Ele já havia lido e estudado durante a semana. Lia uma frase em hebraico e, em seguida, fazia a tradução para o português diretamente. Era a sua tradução, a sua interpretação baseada em inúmeros comentários que ele havia lido. Parava, olhava para o grupo sentado ao redor da mesa, e explicava a frase. Explicava com poucas palavras o essencial da perashá, diretamente, sem rodeios como era seu estilo. Ora usando as interpretações apoiadas nos mestres comentaristas da Torá, como Rashi, Or Hachaim Hakadesh, Ba’al Ha-Turim entre outros, ora utilizando também a Guemátria, e ele a usava de uma maneira brilhante, para dar uma interpretação a partir dos significados escondidos das palavras hebraicas.

Isaac sentado na cabeceira da mesa durante estudo no Tamuld-Torah do shabat.

Ele ia fundo nos termos das raízes das palavras do texto em hebraico. Explicando detalhadamente à sua maneira a sua compreensão da narrativa em questão. Em seguida, com o seu jeito, ele perguntava ao grupo que estava escutando se havia questões e aspectos que poderiam ser ainda comentados com outras palavras e outros textos. Essa era a maneira que ele havia aprendido, ainda garoto no Marrocos. Eu, pessoalmente, denomino essa metodologia presente na pedagogia de Isaac (aliás bastante antiga na tradição judaica e sempre presente nas Yeshivot) de “pedagogia dialógica”, na qual perguntas e respostas estão presentes ao mesmo tempo, e aí podia-se ir longe, como se fosse uma bola de neve, desenvolvendo argumentos e análises dentro da semântica da frase, no atual contexto histórico, ou seja, do mundo e a sua vinculação com a narrativa da perashá. Essa pedagogia está presente também no texto Talmúdico, pode ser até visualizada nas páginas impressas onde aparece os nomes de inúmeras pessoas que comentaram determinado texto da Torá ou de uma questão temática. É a construção de um saber moldado através de uma pedagogia dialógica, ou seja, no sentido profundo da pergunta e nas respostas baseadas em diversas interpretações. Esse diálogo promovia o conhecimento na contemporaneidade, seria então como se todos estivéssemos escrevendo hoje uma nova página do Talmude.

Uma página impressa do Talmude (1)Mishnah, (2) Guemará, (3) Comentários de Rashi, (4) Tosefot (5) Mesoret haShas, (6) Ein Misphat, Ner Mitzvá, (7) Torah Or, (8) Glosário, (9) Outros comentários

Qual era a base dessa fórmula na pedagogia, no jeito de Isaac ensinar? O que ele possuía de especial que as pessoas o procurarem sempre? De um lado eu percebia a sua grande abertura para com outro, e de outro lado a sua maneira firme, sem rodeios, tanto no falar quanto no perguntar. Recentemente, eu tenho me debruçado a entender um pouco mais sobre um dos sábios de Salé, Marrocos, cidade onde viveu meu avô e vários outros conterrâneos que conheço, que vivem nessa diáspora do judaísmo marroquino. Ele é conhecido no mundo como Orh Hachaim Hakadosh, o famoso Ribi Haim Ben Attar, de iluminada memória, que aliás me foi introduzido por Isaac em nossos estudos. Eu, lendo sobre a vida desse sábio, vejo elementos para refletir sobre o jeito de Isaac, a sua maneira de ler, interpretar e falar dos caminhos da Torá. O que existe em comum com esses sábios da Torá? Seria talvez, o fato de eles aceitarem a serem de fato, o “intermediário”, de unir o Criador à Shechiná. Não seria a tarefa de um simples tradutor. É, na realidade, fazer uma intermediação. Isso, os místicos do judaísmo como Simon Bar Yochai, entre outros, por exemplo, chamam de “Unificar o Criador” da unidade do povo de Israel, proveniente da essência da Neshamá.

Cada ato, cada cumprimento de uma Mitzvá, em um tempo e em um espaço, provoca um fragmento desta unidade, nos dizia Isaac. Isso seria, de fato, proclamar a unidade do “lugar” com a presença do Criador. Isaac sabia fazer isso. Presenciamos muitas vezes, ele conhecia profundamente o seu principal guia: as palavras da Torá.

As lamparinas que Isaac acendia na Esnoga Beit Shemuel no início de Shabat antes de ler o Shir Hashirim e iniciar a tefilá de Cabalat Shabat

No acendimento das velas de Shabat, em seguida a recitação do Shir Hashirim no início do Shabat, a tefilá de Cabalat Shabat, o kidush de shabat, a Shaharit, a leitura da Perashat Hashavuá, e depois até a Havdalá, na saída do Shabat, Isaac se transforma. É, na realidade, a sua Neshamá Ieterá comandando todos os seus movimentos no Shabat, para fazer essa unidade com o Criador. Evidentemente, isso na verdade são os princípios cabalísticos presentes, ou seja, a “recepção” na sua mais profunda pureza. Cabalá é uma única palavra, que na realidade expressa na concretude do momento e do lugar, um duplo movimento: aquele do Criador inclinando-se em direção das pessoas, e, as pessoas (a criação) unindo-se ao Criador. No espírito da Cabalá, o Criador, a Criatura e o Mundo estão intimamente ligados com esse movimento. Nesse gesto, nesse movimento, apenas uma palavra pode resumir tudo: o Amor. O espírito da cabala se recriando. Isaac dizia que a Cabalá estava presente desde o ato mesmo da criação, mas que só foi revelada no Sinai, o lugar onde aconteceu a unificação do criador com a criatura e, de onde vem a Shechiná que falamos na atualidade. Moisés apenas a introduziu na história de Israel. Portanto, eu diria que procurar manter essa shechiná no Shabat, era de fato a fórmula, o jeito de Isaac.

O espírito da Cabalá, nos dizia o nosso Chacham Isaac, inspirado nos místicos do judaísmo, é, na realidade, a compreensão plena da Torá pelo Amor do Criador. Ou seja, sua presença está no interior da Torá, a sua Neshamá. A Torá, Luz que ilumina a Cabalá, luz que clareia tudo ao nosso redor. As fontes, os córregos, os rios e os mares, se espalhando em todas as direções, e de ti emana toda a luz. “Quem pode revelar os mistérios que tu escondes?” (Zohar III, 166 b.). Sim, realmente Isaac Essoudry foi e, sempre será visto como o “Chachan dos Retornados”, mas, parafraseando outros autores, eu o vejo também como o “Último Cabalista de Recife”.

Renato Athias é Doutor em Antropologia, do Departamento de Antropologia e Museologia Professor no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco.

NOTAS:

[1] Texto inicialmente preparado para o II Congresso de Estudos Antropologia da Religião, promovido pela Cátedra Anita Novisnky da UFRPE, Recife em fevereiro de 2018. Gostaria de agradecer a Caesar Sobreira pelo convite, ao Guilherme Zaikaner, a todos os organizadores deste evento a oportunidade de poder falar um pouco sobre nosso querido Chacham Isaac Essoudry. Obrigado ao meu amigo Odmar Pinheiro Braga pela leitura prévia deste texto. Outras versões deste mesmo texto, foram publicadas nos seguintes lugares: nos periódicos, Amazonia Judaica, editado pelos amigos David e Elias Salgado; na “Revista Marim dos Caetés”, do Instituto Histórico de Olinda, nos livros: “Toledot Isaac Essoudry”editado por Jucimar Moraes; “O Grande Shofar Isaac Essoudry” editado por Malka Shabtay e Renato Athias e publicado em Israel em janeiro de 2020. [https://medium.com/@rathias/livro-sobre-isaac-essoudry-tem-lan%C3%A7amento-em-jerusalem-b9df2b0f2ed ]

[2] Ramiro Abraham Bentes escreveu “Das Ruinas de Jerusalém à Verdejante Amazônia” em 1983 e o Prof. Samuel Benchimol publicou“Eretz Amazônia” cuja primeira edição impressa em 1998 e saiu uma outra edição em Hebraico em 2013. Para saber mais: https://medium.com/%40rathias/sal%C3%A9-um-lago-no-baixo-amazonas-86721500fb27

[3] DELEUZE & GUATARI, Kafka: por uma literatura menor. Trad. Júlio Castañon Guimarães, Rio de Janeiro: Imago, 1977.

[4] Tradução do livro: “A Tora: Livro da Vida” de Jaime Barylko em 2000.

[5] YERUSHALMI, Y. H. Zakhor: história judaica e memória judaica. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1992, p. 18.

[6] TRIGANO, S. publicado na revista L’HOMME, no.122 em 1992 pp.349

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Written by Renato Athias

Brazilian, Amazonian Jew, Anthropologist, Professor at Department of Anthropology and Museology at the Federal University of Pernambuco, Recife, Brazil.

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